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Tribunal de Saúde do Povo – Veredicto

Tribunal de Saúde do Povo – Veredito

Contexto

Após vários meses de preparação para documentar as práticas violentas da Shell e da Total, as comunidades do Uganda, de Moçambique, do Delta do Níger e da África do Sul apresentaram ao Tribunal de Saúde do Povo doze casos que relatam a enorme amplitude da violência infligida pela Shell e pela Total e subscrita por governos nacionais, organismos multilaterais e outros intervenientes não estatais. O veredicto reconhece que as acusações aqui enumeradas são apenas uma pequena amostra das atrocidades que estão a decorrer tanto nestas regiões como fora delas.

De um modo geral, os testemunhos que foram prestados nos lugares onde a Shell e a Total levam a cabo a sua atividade agrupam-se em temas de grande relevância: a deslocação forçada, a poluição (atmosférica, das fontes de água e dos solos), os problemas de saúde crónicos, a intimidação, a criminalização e o trauma, como consequência. Todos os relatos descrevem também a preocupante conquista do poder estatal por parte destas empresas, utilizada frequentemente para reforçar os aspetos acima mencionados através da violência direta e do assassinato.

Shell

A Royal Dutch Shell é acusada de graves violações do ambiente e dos direitos humanos internacionais, tanto no Delta do Níger como na África do Sul. A Shell, juntamente com a Chevron, está a realizar trabalhos de extração de combustível no Delta do Níger desde a década de 50, provocando enormes prejuízos ambientais que incluem derrames de petróleo devastadores, a queima de gás poluente e a poluição generalizada da água.1 Estas práticas prejudiciais ameaçam de forma direta a saúde do ecossistema e de todos os seres vivos que nele vivem, e têm causado um enorme sofrimento às comunidades afetadas.

Os testemunhos apresentados destacaram a contaminação da água, e assistimos a um vídeo da extração de petróleo dos poços de água para consumo humano. A Shell recusou-se a divulgar as avaliações sobre o impacto da sua atividade, apesar das exigências da comunidade. Como resultado, as comunidades locais estão a sofrer de fome e de pobreza, uma vez que o solo deixou de ser fértil para as poder sustentar.

A comunidade de Obelle ficou exposta a casos crescentes de cancro, insuficiência renal, doenças cardíacas, problemas respiratórios e infertilidade. Os testemunhos das comunidades afirmaram que o ar que respiram é tóxico e que vivem sob a ameaça permanente de incêndios e de perigos relacionados com carbono. Contaram também como os seus familiares estão a sofrer convulsões, abortos espontâneos, irritações nos olhos, queimaduras, irritações na pele e problemas respiratórios. Ao mesmo tempo, os seus meios de subsistência foram e continuam a ser destruídos com a morte do gado e das árvores.

Na Nigéria, as inundações estão a aumentar, exacerbadas pelas alterações climáticas causadas pela exploração e a extração irresponsável do petróleo. Em 2022, mais de 600 pessoas morreram e 1,3 milhões de pessoas foram deslocadas das suas terras. As comunidades do Delta do Níger ficaram inundadas, as casas submersas e destruídas, as terras agrícolas foram arrastadas pelas águas e, com elas, os meios de subsistência da população local. Muitas pessoas ficaram retidas em campos de refugiados em condições terríveis e com pouco ou nenhum apoio.

A resistência à Shell tem sido confrontada com violência. Nos anos 90, numa óbvia demonstração do desrespeito das empresas pela vida humana, a Shell foi acusada de colaborar com os militares nigerianos, o que resultou na execução de Ken Saro-Wiwa, ativista ambiental, e de outros indivíduos inocentes. Ouvimos o testemunho da comunidade de Umuechem que, em 1990, decidiu lutar contra a atividade da Shell no seu território. Através de uma manifestação pacífica, apelaram ao diálogo com o diretor regional. No entanto, a resposta não deixou margem para dúvidas: uma operação de “tiro ao alvo” levada a cabo por polícias “armados até aos dentes” contra os manifestantes e as pessoas que tentavam fugir. Nesse dia, cerca de 50 jovens perderam a vida enquanto procuravam refúgio na vegetação circundante, abatidos a tiro pela política petrolífera”.

Apesar deste ambiente opressivo, as organizações locais, incluindo a We the People Nigeria, a Health of Mother Earth Foundation (HOMEF), o Movement for the Survival of the Ogoni People (MOSOP) e a Environmental Rights Action (ERA), têm lutado corajosamente contra a violência extrativa dos projetos de combustíveis fósseis.

Na África do Sul, a Shell não só demonstrou um desrespeito semelhante pelo ambiente, como também pelo património cultural indígena. A exploração offshore prevista, que utilizava ondas sísmicas prejudiciais para o ambiente e a população, foi suspensa por um tribunal sul-africano na sequência dos protestos incansáveis dos grupos locais.

A atividade extrativa da Shell prevista para ser realizada ao longo da Costa Selvagem constitui uma ameaça direta à saúde das comunidades locais, para quem o oceano não é apenas uma fonte de alimento facilmente afetada pelas atividades extrativas, como também fonte de profunda ligação espiritual.

As políticas e atividades extrativas afetam negativamente a ligação sagrada entre as pessoas e o ambiente que as acolhe e sustenta e o seu impacto na saúde não se pode captar facilmente pelos modelos biomédicos contemporâneos. No entanto, as nações indígenas de todo o mundo têm alertado reiteradamente para as consequências negativas sobre o bem-estar das comunidades que ocorrem quando a comunhão com a terra é perturbada ou alterada.

O povo Xhosa, juntamente com grupos como o Comité de Crise de Amadiba e a comunidade de Mpondo, tem demonstrado uma resistência notável na luta para preservar o seu ambiente e o modo de vida. Apesar de ter de lidar com intimidação e violência, a sua resistência levou a vitórias significativas, como a já mencionada revogação da licença de exploração da Shell na África do Sul.
O povo ganhou no passado e ganhará novamente no futuro!

Total

No Uganda e em Moçambique, a TotalEnergies está atualmente implicada em violações do ambiente e dos direitos humanos. No Uganda, a Total lidera o desenvolvimento do Oleoduto de Petróleo Bruto da África Oriental (EACOP), com o objetivo de transportar petróleo bruto para a Tanzânia, ao longo de 1.400 quilómetros de território do Uganda. O trajeto proposto para o EACOP atravessa ecossistemas sensíveis e terras indígenas, apresentando riscos significativos para a agricultura local, o setor pesqueiro e a saúde das comunidades locais. Em 2019, o governo do Uganda emitiu comunicados sobre a aquisição de terrenos que levaram ao desalojamento de cerca de 14.000 famílias, evidenciando os graves custos humanos e culturais do projeto.

Do Uganda ouvimos testemunhos sobre a deslocação, desapropriação, intimidação, perda de meios de subsistência e deterioração da saúde. Famílias e comunidades foram deslocadas das suas casas ancestrais sem receberem qualquer tipo de indemnização. Os meios de subsistência das comunidades foram destruídos devido às deslocações, o que fez com que as famílias tivessem dificuldade em pagar as propinas escolares, as suas necessidades básicas, o acesso a cuidados de saúde e a medicamentos. A perda de terras levou a uma “proliferação da fome, da pobreza e da desagregação familiar”.

Apesar dos contínuos desafios legais e da oposição significativa, a Total anunciou em 2022 a sua decisão de avançar com a construção. Prometeu melhorar o nível de vida das comunidades com o desenvolvimento da EACOP mas, em vez disso, os testemunhos partilharam que “estamos sem terra e somos os mais pobres do país”. A sua resistência, liderada pela campanha StopEACOP, depara-se frequentemente com violência e intimidação.

Em Moçambique, um país extremamente vulnerável às alterações climáticas, a Total lançou um projeto cujos níveis de emissão de metano fará aumentar as emissões de gases de efeito de estufa de todo o país em 14%. Os empreendimentos da Total em Moçambique têm sido marcados pela exploração e por graves violações dos direitos humanos a nível internacional. O objetivo da empresa de extrair uns impressionantes 65 biliões de metros cúbicos de gás natural até 2024 está repleto de riscos socioeconómicos, especialmente tendo em conta a instabilidade da região, exacerbada em 2016 pelo “Escândalo dos Títulos de Atum” que acabou por desencadear uma crise económica.

Para agravar a situação, a construção do parque de gás natural liquefeito de Afungi levou à evacuação forçada de 557 famílias. As comunidades piscatórias que viviam há gerações a poucos metros do oceano foram realojadas numa “aldeia de realojamento” a mais de 10 km do mar. Os agricultores que tinham perdido as suas terras receberam parcelas de terra pequenas e inadequadas, longe das casas de realojamento para onde tinham sido deslocados. Como resultado, estas comunidades perderam os seus meios de subsistência e foram deixadas na miséria.

A TotalEnergies, como parte da indústria do gás, tem estado associada a conflitos violentos entre insurrectos, forças armadas e mercenários. Até à data, este conflito provocou a deslocação de 1 milhão de pessoas, bem como extorsões, tomada de reféns, ameaças às famílias, agressões sexuais, etc.

Na sequência de um grande ataque de insurgentes à aldeia de Palma (a aldeia mais próxima do Parque Afungi) em março de 2021, a TotalEnergies abandonou a área e os processos em curso com as comunidades, alegando motivos de “força maior”. Suspendeu o projeto por tempo indeterminado e interrompeu todos os pagamentos de compensação. Ao canalizar as receitas através de subsidiárias em paraísos fiscais, a TotalEnergies também evitou o pagamento de impostos no país.2 Entretanto, a sua atividade teve um impacto económico devastador para as comunidades.

Ambos os casos evidenciam o desprezo da TotalEnergies pelo ambiente e pelos direitos humanos internacionais. As ações da empresa precipitaram danos ecológicos generalizados, obrigaram à deslocação milhares de habitantes locais e estão associadas a graves violações dos direitos humanos a nível internacional.

Princípios gerais

O presente processo reconhece e faz parte de uma história expansiva de organização e resistência contra o extrativismo a nível global.3

1. Responsabilidade perante as comunidades afetadas

O presente processo e respetivo veredicto são, antes de mais, responsáveis perante as comunidades afectadas que prestaram testemunho. Reconhecemos que se trata de um processo vivo, e não de um acontecimento que possa ser isolado e examinado. O veredicto baseia-se nas experiências dos juízes e, explicitamente, no diálogo com as comunidades que participaram no tribunal. 

2. Saúde

A saúde deve ser entendida num sentido abrangente. Isto significa que a saúde não é apenas um estado de bem-estar físico, mental e social no que diz respeito ao indivíduo, mas também coletivo, ecológico, cultural e espiritual. Assim, vimos também por este meio reafirmar e exigir o direito universal à saúde.


3. Terra, língua, libertação

Somos guiados pelas práticas e epistemologias libertadoras dos povos indígenas, da terra e do mar, e afirmamos a profunda relação destes povos com as suas terras ancestrais, bem como o direito à autodeterminação das mesmas, de onde também provêm as suas culturas e línguas.

4. Limitações dos sistemas internacionais

Denunciamos a duplicidade de critérios do status quo internacional, assente na contínua opressão e genocídio dos povos de ascendência indígena e africana. O Conselho de Segurança das Nações Unidas, no exercício do seu poder de veto desproporcionado, evidencia este sistema de duplicidade através da inconsistência entre as suas políticas e ações. Esta discrepância foi exposta no Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança (2004) e é ainda sustentada pela inexistência de um mecanismo internacional autenticamente funcional (legal ou outro) para responsabilizar governos e instituições.

5. Desmantelamento dos sistemas hegemónicos de poder

Reconhecemos as matrizes de poder hegemónico que se reforçam mutuamente e que sustentam as ideologias relacionadas com a extração e a dominação fundamentais para as práticas da Shell e da Total, nomeadamente o capitalismo racial colonial e o cis-heteropatriarcado capacitista, bem como a necessidade de desmantelar estes sistemas.


6. Novas práticas de construção do mundo

Reconhecemos e vivemos a necessidade de construir princípios para um futuro de libertação coletiva e da elaboração de estratégias concretas para transformar as realidades em que vivemos. Somos guiados pelo equilíbrio entre estes dois elementos. Isto inclui o reconhecimento das limitações das “democracias” eleitorais e do sistema de “justiça” criminal e o seu fracasso em proporcionar qualquer tipo justiça significativa. Honramos e mantemos a visão de um mundo onde empresas como a Shell e a Total já não existam. A conclusão de todo o processo de reparação descrito abaixo levaria provavelmente ao fim da existência da Shell e da Total como entidades.

Sentença

Com base nos atos acima mencionados, consideramos a Shell (responsável através dos seus anteriores e atuais conselhos de administração) culpada pelas suas atividades no Delta do Níger e na África do Sul, que consideramos extremamente prejudiciais para os meios de subsistência, saúde, direito à habitação, qualidade de vida, direito a viver com dignidade, qualidade do ambiente, direito a viver livre de discriminação e opressão, direito a água potável e o direito à autodeterminação das comunidades afetadas.

Pelas ações acima citadas, consideramos a TotalEnergies culpada das suas atividades extrativas em Moçambique e no Uganda, que consideramos extremamente prejudiciais para os meios de subsistência, a saúde, o direito à habitação, a qualidade de vida, a qualidade do ambiente, o direito a viver sem discriminação e opressão, o direito à água potável e o direito à autodeterminação das comunidades afetadas.

Consideramos os governos do Reino Unido, dos Países Baixos e da França culpados por apoiarem e promoverem as atividades prejudiciais e irresponsáveis de investimento e extração de petróleo e gás na África subsariana.

Consideramos os governos de Moçambique, da África do Sul, do Uganda e da Nigéria culpados de cumplicidade e irresponsabilidade por não terem estabelecido e aplicado legislação, regulamentos, monitorização, bem como o controlo e a aplicação da lei de forma a proteger os direitos dos seus cidadãos.

Também consideramos que instituições como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, que constituem o sistema financeiro internacional predatório, são culpadas de criar condições, através das suas políticas e práticas, que comprometem a liberdade económica das nações e das famílias que, por exemplo, são obrigadas a pagar propinas escolares devido aos programas de adaptação estrutural, ao Tratado da Carta da Energia e à Resolução de Litígios entre Investidores e Estados.

Propomos que o assassinato direto e social sistemático em grande escala, seja através de violência militar e paramilitar como foi partilhado pelos testemunhos de Moçambique, dos impactos nocivos para a saúde das práticas extrativistas como a poluição das fontes de água destacada nos testemunhos de Ogoniland no Delta do Níger, ou mesmo os impactos da crise climática como as inundações descritas no Delta do Níger, constitui um genocídio4 e ecocídio reais.

Exigências e recomendações

Exigências à Shell & Total

PARAR
  1. Todos os planos em vigor para a expansão dos locais de extração de combustíveis fósseis existentes e estabelecer uma moratória permanente sobre a exploração de novos locais.
  2. O financiamento e cumplicidade para com grupos militares e paramilitares, bem como a utilização de forças de segurança privadas para assediar e agredir as comunidades locais. Garantir que esta situação não se repete no futuro.
COMEÇAR 

A criação de uma infraestrutura para o processo de justiça reparadora.

  • Exigimos a admissão pública da culpa e o início de um processo de justiça reparadora. Cabe às comunidades afetadas decidir como o fazer. As sugestões provisórias incluem:
    • Compensação financeira significativa enquanto se aguarda a análise dos registos financeiros para a decisão sobre os montantes finais das sanções compensatórias para cada comunidade.
    • Sessões de mediação imediatas com as comunidades afetadas para obter uma justiça transformadora. As empresas devem pagar todas as taxas, garantir que a mediação seja feita nas línguas indígenas locais e documentar todo o processo. A mediação deve ser conduzida pelas comunidades afetadas, com observadores internacionais selecionados por essas comunidades, e com exigências claras sobre como proceder. Como resultado, poder-se-á levar a cabo um julgamento popular do conselho de administração das empresas e dos responsáveis governamentais do Reino Unido e França.

Apoiar as medidas de justiça sanitária para as comunidades locais

  1. Financiar uma auditoria de saúde independente a nível longitudinal (ou seja, ao longo de várias gerações) nas comunidades afetadas, a fim de identificar os impactos na saúde derivados da extração de combustíveis fósseis.
  2. Proporcionar acesso obrigatório e indefinido aos cuidados de saúde de emergência e de longo prazo para todos os que vivem e/ou trabalham na zona de extração de combustíveis fósseis, sem que as comunidades tenham de provar que os problemas de saúde estão relacionados com essa atividade.
  3. Financiar infraestruturas públicas e locais de investigação para recolher dados epidemiológicos sociais sobre os efeitos da extração de combustíveis fósseis.

Reparação dos impactos decorrentes das deslocações forçadas

  1. Nos casos em que as comunidades tenham sido deslocadas mas não tenha sido iniciada a construção de infraestruturas de extração, as suas terras e recursos associados deverão ser imediatamente devolvidos.
  2. Nos casos em que o regresso imediato não é possível devido à extração de combustíveis fósseis em curso e aos impactos associados, deverá existir uma compensação adequada pela perda de habitação, terra, meios de subsistência, traumas e problemas de saúde, para além da provisão indefinida de habitação segura e de alta qualidade.

Limpeza e reparação dos territórios, incluindo o ar, as águas e os solos afetados

  1. Financiar uma avaliação de impacto ambiental e sanitário rigoroso e independente, com todos os dados disponíveis de forma livre e pública.
  2. As infraestruturas de combustíveis fósseis existentes devem ser desmanteladas e removidas de forma segura, a fim de minimizar o impacto ecológico.
  3. A sua limpeza deve respeitar as normas de qualidade ambiental internacionais (NQA) ou do país de origem da empresa, consoante o que for mais rigoroso.
    Isto inclui também a restituição, tanto quanto possível, dos territórios ao estado em que se encontravam antes da extração.
  4. Sempre que os membros da comunidade assim o desejarem, proceder-se-á ao realojamento, com todas as despesas cobertas, de todas as pessoas que desejem abandonar a área durante o período de limpeza, desobstrução e descontaminação, e meios para regressar quando a terra for segura para habitar.

Reconhecer as soberanias locais e concretizar as exigências das campanhas locais

  1. No Uganda, apelamos à Total que cesse os trabalhos de construção do oleoduto de crude da África Oriental, de acordo com o apoio local e internacional StopEACOP campaign
  2. No Delta do Níger, apelamos à Shell que satisfaça categoricamente as exigências apresentadas no Niger Delta Manifesto for Socio Ecological Justice

Financiar e cooperar com todas as condições inerentes a uma transição justa5

  1. Assumir o compromisso de promover a justiça energética local durante o período de transição, segundo as condições das comunidades locais, e uma transição justa para empregos dignos e de qualidade para todos os trabalhadores, tendo em conta as suas necessidades, tal como referido no “A Strategic Framework for a Just Transition”.  
  2. Compensar as comunidades pelos impactos sanitários a jusante das alterações climáticas causadas pela extração de combustíveis fósseis, em conformidade com avaliações independentes da culpabilidade, como a Time to Pay Paper.

Exigências aos governos e às instituições multilaterais

A) Governos do Uganda, Nigéria, África do Sul e Moçambique

PARAR
  1. A utilização de subsídios fiscais e fundiários para enriquecer os bolsos das empresas de combustíveis fósseis que causam danos imensuráveis às comunidades.
  2. O apoio a qualquer plano net zero que não dê prioridade à eliminação progressiva dos combustíveis fósseis e a uma transição justa associada
  3. Permitir que a polícia e as forças militares intimidem e ataquem as comunidades locais em nome da proteção dos interesses das empresas de combustíveis fósseis ou de funcionários governamentais cúmplices. 
  4. O uso de segurança privada e de forças paramilitares pelas empresas de combustíveis fósseis e garantir que a violência não se repita.
COMEÇAR 

A criar infraestruturas para a justiça reparadora

  1. Sancionar as empresas de extração de combustíveis fósseis pelos danos e destruição que causaram às comunidades e aos seus territórios ao longo de décadas. Essas multas devem ser utilizadas para levar a cabo a reparação justa dessas comunidades.  
  2. Admitir o papel ativo do Estado na viabilização da violência causada pelos combustíveis fósseis e dar início a um processo de justiça reparadora, de acordo com as necessidades das comunidades afetadas.
  3. Pagar e facilitar o Diálogo de Reconciliação Nacional liderado pelas comunidades afetadas para que cada uma partilhe as suas reclamações e exigências. 
  4. Quando exigido pelas comunidades afetadas, honrar os pedidos de demissão dos representantes ministeriais, provinciais e locais do Estado e realizar novas eleições. 
  5. Elaboração de mecanismos democráticos participativos significativos, tais como julgamentos populares de funcionários, sempre que exigido pelas comunidades locais.

Restauração dos direitos sobre a terra

  1. Restaurar e proteger os direitos fundiários práticos e legislativos dos povos indígenas e locais para os seus territórios ancestrais, de modo a torná-los inalienáveis. 
  2. Todas as decisões relativas à utilização da terra devem ser tomadas pela comunidade local.
  3. Garantir a proteção dos defensores da terra e das suas famílias.

Recuperação dos territórios, incluindo o ar, as águas e as terras afetados

  • Criar políticas e requisitos legais que obriguem as empresas poluidoras a proceder à limpeza das zonas terrestres e aquáticas afetadas, estipulando um calendário acordado pelas comunidades afetadas. A limpeza deverá respeitar as normas de qualidade ambiental (NQA) internacionais ou do país de origem da empresa – o que for mais rigoroso. Isto inclui a garantia da restituição dos territórios ao Estado por parte das empresas extrativistas.

Avançar rumo à justiça sanitária

  1. Financiar avaliações independentes sobre o impacto ambiental e sanitário e multar as empresas poluidoras pelas suas atividades extrativas. 
  2. Criar infraestruturas públicas de investigação para recolher dados epidemiológicos sociais sobre os efeitos da extração de combustíveis fósseis nas zonas afetadas, pagas pelas empresas poluidoras.
  3. Reconhecer a acuidade das necessidades de saúde e garantir o acesso a cuidados de saúde intensivos e a longo prazo para todas as pessoas afetadas pelas empresas poluidoras.

Monitorizar a transição justa do povo

  1. Garantir uma transição justa, liderada pelas comunidades afetadas, que assegure e mantenha a justiça energética para todos e permita a transição para os trabalhadores locais das indústrias de combustíveis fósseis. 
  2. As comunidades, os trabalhadores, os Estados e outros intervenientes devem alcançar juntos as transições que promovam a reparação, restauração, equidade, direitos e o bem comum. As transições para as energias renováveis devem igualmente garantir uma distribuição justa e priorizar a energia para o serviço público em detrimento do lucro.

B) Governos do Reino Unido, dos Países Baixos e de França

(países onde estas empresas estão sediadas ou com as quais estão associadas) 

PARAR
  1. Utilização de dinheiro público para subsidiar empresas de combustíveis fósseis 
  2. Conceção de licenças para novos projetos de combustíveis fósseis no Reino Unido, Países Baixos e França
  3. Apoio a qualquer plano net zero que não priorize a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis e a uma transição justa associada
  4. Utilização do poder político e económico internacional para apoiar os mecanismos legais e extralegais que mantêm e permitem a violência da Shell e da Total.
COMEÇAR

Assumir a responsabilidade pelas ações da Shell e da Total

  1. Compensar financeiramente as comunidades afetadas e participar no processo de justiça reparadora, conforme exigido pelas mesmas. 
  2. Cada empresa deverá responsabilizar-se pelas despesas das campanhas internacionais de sensibilização (dirigidas por organizações de base) sobre as suas políticas e práticas extrativas prejudiciais.

Utilizar as leis nacionais para responsabilizar a Shell e a Total 

  • Aplicar legalmente as recomendações supracitadas dirigidas à Shell e à Total, através da legislação nacional e internacional.

Para atender às reivindicações dos movimentos de justiça reparadora  

  • Proceder a uma avaliação independente do impacto do colonialismo e do neocolonialismo nas comunidades em África, liderada por estudiosos africanos especialistas em justiça reparadora, e pelas comunidades locais. Deverá incluir uma avaliação dos contínuos impactos na saúde causados pela extração de recursos e pela crise climática pela qual países como o Reino Unido, os Países Baixos e a França são significativamente responsáveis. Consideramos as exigências da coligação Reparations UK (https://climatereparations.uk/#demands) como ponto de partida.

Acompanhar a transição justa de uma população

  • As comunidades, os trabalhadores, os Estados e outras partes interessadas devem alcançar juntos as transições que promovam a reparação, a restauração, a equidade, os direitos e o bem comum. As transições para a energia verde também devem garantir uma distribuição justa e a prioridade energética deverá servir as necessidades públicas em detrimento do lucro.

C) Agências multilaterais 

PARAR
  • O litígio ou a ameaça de litígio por parte das empresas de combustíveis fósseis, ou por empresas sediadas em países, através do Arbitragem de Litígios entre Investidores e Estados (ISDS) e mecanismos relacionados. Para além disso, apelamos concretamente à retirada do Tratado da Carta da Energia.  
COMEÇAR

Reconhecimento dos crimes de guerra, genocídio e ecocídio cometidos pelas empresas de combustíveis fósseis

  • A ONU (e mais concretamente o Gabinete de Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger) deve questionar e redefinir o genocídio como sendo constituído pelo resultado, e não pela intenção.

Reconhecimento do colonialismo por parte dos colonos que utilizam combustíveis fósseis 

  • O ACNUR deve reconhecer os direitos das pessoas deslocadas devido às indústrias extrativas, sob o termo “pessoa deslocada internamente”.

Responsabilidade jurídica internacional por parte das empresas de combustíveis fósseis

  • Iniciar processos legais perante o Tribunal Penal Internacional contra as empresas de combustíveis fósseis e/ou seus executivos por crimes contra a humanidade.6

Associar as exigências à adesão a organizações multilaterais ou sindicatos

  • As agências multilaterais devem vincular o direito de adesão à obrigação de satisfazer as exigências de reparação, por exemplo, a necessidade de atribuir um orçamento específico para reparações holísticas às comunidades afetadas pelos impactos imprevisíveis do passado, do presente e do futuro das agenda e práticas empresariais criminosas. Direito de exigir a suspensão dos membros até que a exigência seja satisfeita.

Recomendações aos movimentos

PARAR
  • O apoio ao “capitalismo verde” e a extração colonial para a produção de energia renovável.
COMEÇAR

Alimentar a solidariedade global internacionalista entre as diferentes lutas

  1. Fortalecer e desenvolver as relações sul-sul e sul-norte com o compromisso de aprendizagem mútuo e construção de poder para uma ação coletiva.
  2. Conectar e organizar explicitamente lutas diversas, reconhecendo que todas são impulsionadas pelos sistemas de poder descritos anteriormente.

Utilizar os mecanismos tradicionais de responsabilização

  • Identificar advogados que exerçam o direito internacional para impulsionar processos de ação coletiva contra a Shell e a Total através do Tribunal Penal Internacional e/ou outros. 
  • Identificar e explorar o potencial das ações que acionistas possam tomar contra a Shell e a Total e quem as financiam.

Comprometer-se a uma organização baseada em propostas

  • Este compromisso apela a uma reinvenção das instituições políticas e dos movimentos pelos quais são responsáveis. Significa não só trabalhar para o desmantelamento total dos sistemas de poder hegemónicos acima descritos, mas também ter capacidade organizativa para construir ecossistemas de políticas e ações que “promovam a vida”7 e que não salvaguardem os vulneráveis da exploração, mas sim que não permitam sequer a possibilidade de que sejam vítimas de exploração.

Notas

1. PNUA – Avaliação ambiental da Ogoniland (2011): https://wedocs.unep.org/20.500.11822/7947

2. https://thewire.in/world/oil-and-gas-multinational-total-is-making-a-mess-in-mozambique

3. O veredicto tem por base os seguintes instrumentos jurídicos internacionais, conforme sublinhado por um anterior Tribunal Popular Internacional de Saúde: a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (1948), o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966), a Declaração de Alma-Ata (1977), a Carta de Ottawa para a Promoção da Saúde da Organização Mundial de Saúde (1986), o Protocolo de San Salvador (1988), a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (1989), a Declaração para a Saúde dos Povos (2000), a Carta de Banguecoque para a Promoção da Saúde num Mundo Globalizado (2005) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007).

4. Na Convenção de 1948 para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, a definição de genocídio é definida da seguinte forma:”Qualquer dos atos abaixo indicados cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal:

1. Tirar a vida a membros do grupo;
2. Provocar lesões corporais ou mentais graves a membros do grupo;
3. Infligir deliberadamente ao grupo condições de vida suscetíveis de provocar a sua destruição física, total ou parcial;
4. Impor medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
5. Transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”.

Esta definição de genocídio requer “intenção”. Consideramos que as ações da Shell e da Total equivalem a uma ignorância voluntária que, na prática, constitui uma intenção.

5. O modelo de orientação para uma transição justa aqui referido baseia-se no modelo estabelecido pela Movement Generation: https://movementgeneration.org/wp-content/uploads/2016/11/JT_booklet_English_SPREADs_web.pdf

6. Para mais informação, consulte: https://www.greenpeace.org/static/planet4-netherlands-stateless/2023/03/f9f5d5b6-inventory-of-crimes.pdf

7. Esta frase foi intencionalmente retirada do trabalho da Dra. Ruth Wilson Gilmore, abolicionista do sistema prisional.

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